Tiago Mesquita Carvalho
Colecção Boquim
0 livro
Literatura
18 x 12 cm
250 páginas
ISBN 979-10-92521-03-0
Num quarto uma voz desperta na estranha incerteza de ter nascido. Na ignorância do que será afinal esse encontro entre si própria e um mundo, emerge inevitável uma tentativa de explicação e uma sede por referências; avançando, a voz, curiosa e inquisitiva, começa através das palavras a entretecer aquilo que vai tornando seu, enquanto é atravessada por uma estranha e vaga familiaridade. O seu relato, quase liberto de memória, vai configurando um mundo que é constantemente renovado e questionado, até ao abalo da pretensão a uma descrição verídica…
Alice mostra como a linguagem pode ou não adquirir um peso estruturante no estabelecimento dos problemas e tragédias que atravessam as vidas humanas, e como as palavras são também sintomas plásticos e sinuosos, saturados das sucessivas experiências de cada um.
O autor
Tiago Mesquita Carvalho: nado em 1981. Licenciado em Engenharia do Ambiente, Pós-Graduação em Planeamente Regional e Urbano e mestre em Filosofia da Natureza e do Ambiente. Autor de artigos e comunicações nas áreas descritas. Colaborou na Rádio Zero até 2006 e com o Jornal Pedal desde 2012. Fundador da Cicloficina dos Anjos e membro do colectivo GMURDA de activação acústica de espaços abandonados. Investigou mobilidade suave, paisagens sonoras e as representações culturais luso-nipónicas do ambiente enquanto bolseiro no IST e Fundação Oriente. Membro colaborador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa desde 2009 como investigador no projecto «Filosofia e Arquitectura da Paisagem». Residência artística na Binaural no âmbito do Paivascapes 2011. Alice é o seu primeiro livro publicado.
Trecho
É um mundo que cresce quando distinguido, expande-se ao ser revelado, afectamo-nos de sentidos e em descobertas e isto ainda só com o lobrigado nas trevas, posso ainda, poderei, percorrê-lo com uns dedos ou escutá-lo se gritar, se houver voz, entendendo, mas, de verdade, para já, só lhe posso juntar mesmo o aqui, o agora e esperar que ele me invente, aos poucos, acatando. Parece então que posso adiantar a possibilidade de estar num quarto, estarei num qualquer quarto, quero estar num quarto, embora tal não seja seguro, devendo continuar o exame e foi com este entendimento que decidi perscrutar uma janela, entre os vários escuros, pois qualquer quarto terá uma janela ou pelo menos um postigo, por onde ninguém entra mas que todos atravessam, com o olhar, não cuidando em ver, oxalá que sim pois senão talvez esteja numa enxovia ou numa casamata, uma casamata subterrânea, húmida e bafienta, cheia de bragais ferrugentos e pedras soltas e cacos com segredos mas isto é só a imaginação a palrar, outra, deixá-la-ei entreter-se, sem restrições e agora cheirando alguns lençóis, sem estarem perfumados não são de todo desagradáveis, deverá então estar para breve o momento em que pousarei os olhos nos cavacos de luz de um sol que terá também acordado e que me possa amanhecer para nos repetirmos outra vez, será, seria, um desejo leve, um desejo possível, encontrá-la, à janela e ver uma procissão de pós flutuando nos raios de luz e que lhes ilustrasse o percurso e pelo menos me projectasse algumas sombras, mesmo sem cor seriam já alguma coisa.
Tiago Mesquita Carvalho © éditions Vagamundo, 2014