De passagem

Elsa Bettencourt

COLEÇÃO BOQUIM

 

 


O livro

Poesia (prosa)
18 x 12 cm
160 páginas
Encadernação: capa mole
Acabamento: brochura
ISBN 979-10-92521-24-2

De passagem é, diz a autora, «como me sinto sempre, desde a primeira vez que fiz as malas. Aprendi a eternizar a fugacidade do momento com a observação do pormenor ao ínfimo milímetro. Aprendi a ouvir como se fosse surda, a ler as histórias no fundo dos olhos de cada pessoa. De passagem é um diário de viagens soltas, exteriores e interiores. A minha visão, das janelas por onde espreito, dos lugares por onde ando, das pessoas que me emocionam. É o meu elogio à memória, à grandeza das coisas pequenas, à importância duma folha de videira esmagada entre as mãos, às mil formas de guardar o tempo.»

O autorA

Elsa Bettencourt, filha de mãe madeirense e de pai açoriano, nasceu em Lisboa no primeiro dia de outubro de 1968, no hospital com o nome da ilha que a acolheu. Começou a escrever na máquina de escrever do pai, ainda antes da escola primária e a pintar nos cantos de todas as folhas. Em São Miguel acabou o liceu, fez o primeiro curso de joalharia, com o mestre José Soares, da Academia das Artes de Ponta Delgada. Interrompeu o curso de línguas e literatura moderna na Universidade dos Açores para começar a voar na TAP Portugal como tripulante de cabine e conhecer o mundo até onde as asas a levam. É jardineira, florista e doceira no livro Sem Ninguém de Pedro Guilherme-Moreira. Em 2014 começa a dar palavras, presença e voz, ao filme sobre a ilha de Santa Maria, Little America, do realizador francês, Marc Weymuller. Em 2016 inicia o projecto de recuperação do bosque centenário da família, com a poesia de todas as artes e os recursos duma ilha com mais de oito milhões de anos. Tem três filhos que são a razão de todos os regressos a casa.

Trecho

De manhã, antes de todos acordarem, passeava descalça pela casa, repondo as coisas da véspera, no lugar das coisas de hoje. Tropeçava nelas, para as encontrar, esquecia-se delas, para as relembrar. Perdia os pássaros por distração, como não sentia a sombra das asas que pairavam, achava que tinham ido ali à frente, a voar mais depressa e que voltavam sempre, até à estação mais madura, onde a fruta aparece bicada. Também tinha a certeza que, fosse que dia fosse, era sempre o mesmo bando. Quando, os outros, a chamavam despassarada, não entendia porquê. Só abria, muito, os braços, paralelos à linha do horizonte e os doze, sempre, pousavam. Despassarada? O sobrado fresco debaixo dos pés, a maciez das tábuas enceradas, parece veludo para caminhar até à estrada quente, sempre com a sensação de abrigo, de proteção, de leveza, de corrida sem obstáculos, de salto, até ao vôo, até ao espaço onde a sombra não existe senão nos campos lá em baixo. Tive de abrir a janela, antes dos primeiros passos, retirei as portas, depois soltei o telhado. Fiz do meu corpo abrigo, abençoei-o antes de ir e parti. Quando parto, chego de seguida, com a memória de nada, até que o pouso me relembre da raiz na planta dos meus pés.


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